O mito do gênio bipolar: criatividade, sofrimento e a realidade clínica por trás da idealização
- Ana Claudia Melo
- há 2 dias
- 4 min de leitura

Ao longo dos meus anos de clínica, já ouvi inúmeras vezes comentários como:
“Ele é bipolar, mas é muito criativo.”“Ela é bipolar, mas consegue reverter muitos contatos em vendas.”
Essas frases sempre me chamam atenção porque revelam uma percepção romantizada — e perigosa — de que a bipolaridade traz algum tipo de “superpoder”. É como se a doença concedesse acesso privilegiado a uma intensidade emocional produtiva, um estado de genialidade ou brilho profissional.
Mas essa visão, embora comum, não resiste à análise clínica séria. A idealização do “gênio bipolar” não só desinforma, como também banaliza o sofrimento real vivido por quem convive com o transtorno. É sobre essa desconstrução necessária que escrevo neste artigo.
De onde veio o mito do gênio bipolar?
Grande parte da romantização da bipolaridade vem de artistas e escritores históricos que, retrospectivamente, se acredita terem apresentado sintomas do transtorno. A psiquiatra Kay Redfield Jamison, referência mundial no estudo da bipolaridade e coautora do clássico “Manic-Depressive Illness”, investigou profundamente a relação entre humor elevado e criatividade ao longo da história.
Em suas pesquisas, Jamison mostra que:
Há associação estatística entre traços afetivos intensos e atividade criativa em algumas pessoas.
Mas não há evidência de que o transtorno bipolar seja responsável por produção de alto desempenho.
A mania prejudica muito mais do que ajuda — e sua intensidade costuma destruir a consistência criativa necessária para qualquer carreira.
A própria Jamison, que também vive com transtorno bipolar, afirma: “A mania oferece a ilusão de produtividade, não a produtividade real.” Ou seja, criatividade e bipolaridade podem coexistir, mas não porque uma gera a outra.
A trapaceira sensação de “desempenho elevado” na hipomania
Muitas pessoas confundem hipomania com eficiência excepcional. Na hipomania:
A pessoa fala mais rápido.
Produz muito em pouco tempo.
Assume tarefas com entusiasmo.
Parece mais sociável, persuasiva ou brilhante.
Isso pode, de fato, criar a impressão de que ela está em seu “melhor momento”. Mas, como profissional que convive de perto com pacientes bipolares (e com minha própria experiência familiar), afirmo com segurança: a hipomania cobra um preço alto.
Seus efeitos típicos incluem:
Falta de continuidade nos projetos.
Erros graves por impulsividade.
Conflitos interpessoais.
Tomada de decisões arriscadas.
Queda abrupta quando o ciclo vira para depressão.
O que parece genialidade é, muitas vezes, energia desorganizada.
A realidade clínica: a bipolaridade mais destrói do que potencializa
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o Transtorno Bipolar entre as principais causas de incapacidade psicossocial no mundo, especialmente por:
Altas taxas de recaídas.
Comprometimento funcional prolongado.
Risco de suicídio significativamente aumentado.
Cerca de 15% a 20% das pessoas com bipolaridade tentam suicídio ao longo da vida, segundo dados internacionais amplamente reconhecidos. Isso não combina com o mito do “gênio iluminado pela intensidade”.
A verdade é clara:
A mania desestabiliza.
A depressão paralisa.
O ciclo destrói vínculos, autoestima e carreira.
Ver genialidade onde existe sofrimento é uma forma de negar a necessidade de tratamento.
Como a idealização prejudica pacientes e familiares
A romantização traz consequências graves:
Atraso no diagnóstico: pessoas interpretam sintomas como “criatividade” ou “fase boa”.
Resistência ao tratamento: alguns acreditam que o uso de estabilizadores vai “apagar seu brilho”.
Culpa e confusão familiar: parentes se sentem pressionados a apoiar comportamentos nocivos porque “é o jeito dele(a) criar”.
Normalização da mania: perde-se a capacidade de perceber risco.
Ao idealizar, diminuímos a gravidade clínica — e isso é perigoso.
Criatividade real x estado maníaco: uma diferença fundamental
É essencial distinguir:
Criatividade:
Processo organizado
Flexibilidade cognitiva
Continuidade
Capacidade de aprimoramento
Mania:
Impulsividade
Desorganização
Múltiplas tarefas inacabadas
Perda de discernimento
A pesquisadora Nancy Andreasen, referência em criatividade e neuropsiquiatria, lembra em seus estudos com escritores premiados que criatividade elevada e transtorno bipolar não são sinônimos. Muitos artistas criativos nunca apresentaram qualquer transtorno de humor. Criar exige método — e a mania justamente destrói o método.
O papel da TCC na desidealização e na reconstrução do autoconceito
A Terapia Cognitivo-Comportamental tem papel central em ajudar pacientes a:
Identificar crenças distorcidas sobre produtividade.
Entender que energia não é equivalente a funcionalidade.
Construir rotinas reais de criação ou trabalho.
Prevenir recaídas por valorização excessiva da hipomania.
Redefinir sua identidade para além do diagnóstico.
Como terapeuta, muitas vezes digo:
“Você não é bipolar e criativo apesar da doença — você é criativo porque é você, e ponto.” Isso quebra a fantasia da genialidade e devolve a autoria do talento à pessoa, não ao transtorno.
Se você quer entender a bipolaridade sem romantizações…
A bipolaridade não é brilho. Não é vantagem. Não é inspiração. É um transtorno clínico sério, que pode conviver com talento — mas não o produz. Se você convive com bipolaridade, direta ou indiretamente, e deseja compreender melhor os ciclos, riscos e manejos, entre em contato. A psicoterapia pode ajudar a construir uma relação mais realista, segura e humana com a própria história emocional.
Ana Cláudia Melo – Psicóloga clínica


