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O mito do gênio bipolar: criatividade, sofrimento e a realidade clínica por trás da idealização

o mito do gênio bipolar

 

Ao longo dos meus anos de clínica, já ouvi inúmeras vezes comentários como:


“Ele é bipolar, mas é muito criativo.”“Ela é bipolar, mas consegue reverter muitos contatos em vendas.”

     

Essas frases sempre me chamam atenção porque revelam uma percepção romantizada — e perigosa — de que a bipolaridade traz algum tipo de “superpoder”. É como se a doença concedesse acesso privilegiado a uma intensidade emocional produtiva, um estado de genialidade ou brilho profissional.

       Mas essa visão, embora comum, não resiste à análise clínica séria. A idealização do “gênio bipolar” não só desinforma, como também banaliza o sofrimento real vivido por quem convive com o transtorno. É sobre essa desconstrução necessária que escrevo neste artigo.

 

De onde veio o mito do gênio bipolar?

 

      Grande parte da romantização da bipolaridade vem de artistas e escritores históricos que, retrospectivamente, se acredita terem apresentado sintomas do transtorno. A psiquiatra Kay Redfield Jamison, referência mundial no estudo da bipolaridade e coautora do clássico “Manic-Depressive Illness”, investigou profundamente a relação entre humor elevado e criatividade ao longo da história.

 

      Em suas pesquisas, Jamison mostra que:

 

  • associação estatística entre traços afetivos intensos e atividade criativa em algumas pessoas.

  • Mas não há evidência de que o transtorno bipolar seja responsável por produção de alto desempenho.

  • A mania prejudica muito mais do que ajuda — e sua intensidade costuma destruir a consistência criativa necessária para qualquer carreira.

 

      A própria Jamison, que também vive com transtorno bipolar, afirma: “A mania oferece a ilusão de produtividade, não a produtividade real.” Ou seja, criatividade e bipolaridade podem coexistir, mas não porque uma gera a outra.

 

A trapaceira sensação de “desempenho elevado” na hipomania

 

      Muitas pessoas confundem hipomania com eficiência excepcional. Na hipomania:

 

  • A pessoa fala mais rápido.

  • Produz muito em pouco tempo.

  • Assume tarefas com entusiasmo.

  • Parece mais sociável, persuasiva ou brilhante.

 

      Isso pode, de fato, criar a impressão de que ela está em seu “melhor momento”. Mas, como profissional que convive de perto com pacientes bipolares (e com minha própria experiência familiar), afirmo com segurança: a hipomania cobra um preço alto.

 

     Seus efeitos típicos incluem:

 

  • Falta de continuidade nos projetos.

  • Erros graves por impulsividade.

  • Conflitos interpessoais.

  • Tomada de decisões arriscadas.

  • Queda abrupta quando o ciclo vira para depressão.

 

      O que parece genialidade é, muitas vezes, energia desorganizada.

 

A realidade clínica: a bipolaridade mais destrói do que potencializa

 

       A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o Transtorno Bipolar entre as principais causas de incapacidade psicossocial no mundo, especialmente por:

 

  • Altas taxas de recaídas.

  • Comprometimento funcional prolongado.

  • Risco de suicídio significativamente aumentado.

 

      Cerca de 15% a 20% das pessoas com bipolaridade tentam suicídio ao longo da vida, segundo dados internacionais amplamente reconhecidos. Isso não combina com o mito do “gênio iluminado pela intensidade”.

 

     A verdade é clara:

 

  • A mania desestabiliza.

  • A depressão paralisa.

  • O ciclo destrói vínculos, autoestima e carreira.

 

      Ver genialidade onde existe sofrimento é uma forma de negar a necessidade de tratamento.

 

Como a idealização prejudica pacientes e familiares

 

A romantização traz consequências graves:

 

  • Atraso no diagnóstico: pessoas interpretam sintomas como “criatividade” ou “fase boa”.

  • Resistência ao tratamento: alguns acreditam que o uso de estabilizadores vai “apagar seu brilho”.

  • Culpa e confusão familiar: parentes se sentem pressionados a apoiar comportamentos nocivos porque “é o jeito dele(a) criar”.

  • Normalização da mania: perde-se a capacidade de perceber risco.

 

Ao idealizar, diminuímos a gravidade clínica — e isso é perigoso.

 

Criatividade real x estado maníaco: uma diferença fundamental

 

É essencial distinguir:

 

Criatividade:

 

  • Processo organizado

  • Flexibilidade cognitiva

  • Continuidade

  • Capacidade de aprimoramento

 

Mania:

 

  • Impulsividade

  • Desorganização

  • Múltiplas tarefas inacabadas

  • Perda de discernimento

 

      A pesquisadora Nancy Andreasen, referência em criatividade e neuropsiquiatria, lembra em seus estudos com escritores premiados que criatividade elevada e transtorno bipolar não são sinônimos. Muitos artistas criativos nunca apresentaram qualquer transtorno de humor. Criar exige método — e a mania justamente destrói o método.

 

O papel da TCC na desidealização e na reconstrução do autoconceito

 

A Terapia Cognitivo-Comportamental tem papel central em ajudar pacientes a:

 

  • Identificar crenças distorcidas sobre produtividade.

  • Entender que energia não é equivalente a funcionalidade.

  • Construir rotinas reais de criação ou trabalho.

  • Prevenir recaídas por valorização excessiva da hipomania.

  • Redefinir sua identidade para além do diagnóstico.

 

Como terapeuta, muitas vezes digo:

“Você não é bipolar e criativo apesar da doença — você é criativo porque é você, e ponto.” Isso quebra a fantasia da genialidade e devolve a autoria do talento à pessoa, não ao transtorno.

 

Se você quer entender a bipolaridade sem romantizações…

 

A bipolaridade não é brilho. Não é vantagem. Não é inspiração. É um transtorno clínico sério, que pode conviver com talento — mas não o produz. Se você convive com bipolaridade, direta ou indiretamente, e deseja compreender melhor os ciclos, riscos e manejos, entre em contato. A psicoterapia pode ajudar a construir uma relação mais realista, segura e humana com a própria história emocional.

 Ana Cláudia Melo – Psicóloga clínica


 
 
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